Com altivez
aquela mulher como que nos encostava à parede (inexistente naquela rua por onde
passávamos naquele momento). – Vocês não
precisam de álcool, fumos, noites em branco, sexo… precisam antes de lucidez,
luz, Nomes, vida, amor.
Estou cansado de pensar.
- Quem te disse a ti o que precisamos ou não
precisamos?
– despachei eu apreensivo e também preocupado com a dúvida de Jim. Até àquela
noite nunca antes tínhamos sequer ficado um instante que fosse a reflectir
sobre como dar um sentido à vida. Que sentido? Só sabíamos que o que fazíamos,
aquilo que éramos, obedecia às regras que não tinham nunca sido criadas por
delas nunca sequer nos termos lembrado. A noite era o Sol da nossa vida. O sexo
o alimento que nos fazia sobreviver, suportar e aguentar pelo próximo Sol e os
Nomes a única droga que evitávamos sempre de forma espontânea, talvez porque
sabíamos desde sempre que o Sol nunca usa a mesma trajectória exacta dois dias
seguidos. Em tantos anos e tantas noites como aquela nunca nas outras tínhamos
perdido segundo e meio sequer a debruçarmo-nos sobre o modo de encarar a vida.
Muito menos imaginaríamos que pudesse ser aquela mulher, fruto do acaso como
tantas outras que já tinham passado por nós nas mesmas circunstâncias, que nos
iria alertar para essa situação. Jim e eu não temos idade. Nunca tivemos, nunca
teremos. Conhecemo-nos sem nos lembrarmos sequer desde quando e ficaremos
juntos até quando for. Eu sou Ele, Ele é Jim, os dois somos um e cada um de nós
tem a sua atitude, o seu modo de encarar as situações, contudo quase nunca
diferentes na forma de as olhar e abordar. Somos irmãos de sangue, gémeos
verdadeiros filhos de pais diferentes. Ele é ruivo, eu sou moreno, Ele é alto,
eu sou baixo. Ele é Jim, eu sou eu. Mas somos iguais.
E vim ter contigo
à procura de paz
E vim ter contigo
à procura de ouro
E vim ter contigo
à procura de mentiras
E deste-me febre
& sabedoria
& gritos
& dor
& estaremos aqui
no dia seguinte
no dia seguinte
&
Amanhã
sei bem o
que nos esperava. O mesmo de todos os dias. Ou de todas as noites, digamos
assim. Só aquela mulher não tinha entendido. Mas como poderia? Não nos conhece
de lado nenhum. Não sabe quem é Jim. Nunca me viu antes. Quem pensa ela que é? Para onde nos quer levar? Continuo apreensivo
naquele momento, mas curiosamente Jim não e isso ainda me deixa pior. Até ali
eu era aquele que mais rapidamente se deixava arrastar. Jim sempre fora o mais
firme. Sempre fora Ele que guiara e não o contrário. Quanto muito deixava-me
pegar no volante quando se sentia dominado por alguma das fraquezas naturais
que apoquentam o ser humano depois de muitos excessos e longas horas desafiando
a ordem natural das coisas. Não mais que isso. Daí aquele estranho momento que
se confunde com o sentimento. Tudo o que eu digo está certo. Tudo o que eu
penso é adequado. É como se Ele pela primeira vez não estivesse ali
verdadeiramente presente. E Jim não é tipo para adormecer primeiro que eu. Poderia estar enfeitiçado? Talvez aquela
mulher lhe tivesse rogado alguma praga ou lhe tenha dado alguma coisa para ingerir
que eu não reparei. Ou, quem sabe, Jim esteja simplesmente a fraquejar. Nem dei
conta do quanto andei até ao momento em que ela me desperta dos meus
pensamentos – é aqui que vivo. –
Olhei em volta e vi que Jim ainda estava extasiado com o que observava. – Esta é a rua do amor.
E passam gays, lésbicas e outros que não são nem
uma coisa nem outra. E passam seres solitários. Pernas que se cruzam com as
nossas, algumas desnudas que com a menor dificuldade captam a atenção do Jim e
a minha. Duas, pertenças de uma musa em particular, e Jim fica excitado,
És ela
Pareces ela
Como poderias ser quando
Nunca ninguém pôde
mas ela não
nos liga. Nem tão pouco faz caso algum. E prossegue altiva e distante descendo
a rua no sentido contrário ao nosso. Jim obriga-me a dar meia-volta para
seguirmos atrás. Ela sente-se desconfortável mas nem mesmo assim acelera o
compassado passo. O andar que nos parece conferir ser pertença de alguém dona
de uma forte personalidade. Quase esboçamos uma intenção de corrida de modo a
chegarmos perto. Acertamos o ritmo quando nos encontramos a dois metros de
distância. Deitados, Jim e eu, conseguiríamos tocá-la. Um de nós veria mesmo
por debaixo da saia curta que vai roçando aquele par de pernas e que nos
embriaga naquela hora. Em uníssono e plenos de desejo gritámos: - Olá, eu amo-te! - mas ela não nos
liga. A bem da verdade actua como se nada estivesse por ali a acontecer.
Insistimos. Outra vez ao mesmo tempo: -
Não nos vais dizer o teu nome? - e nada. Segue o seu caminho, equilibrando-se
experientemente no alto dos seus longos e finos sapatos de salto alto enquanto
desce a rua. Cruza-se com uns e com outros que vai cegando à medida que o seu
olhar com os deles se atravessa. E nós atrás vamos rindo nas suas doentias
caras, gozando-os e até atiçando-os, perguntando a cada um que por ela passa se
acha que teria alguma vez capacidade para foder aquela rainha com olhos de anjo(?)-
Olá, eu amo-te! - insistimos. - Não
nos vais dizer o teu nome? - ela na dela. - Deixa-nos entrar no teu jogo - acrescentámos daquela vez. Mas ela
segue de nariz no ar. Nem uma, nem duas. Não quer saber de nada. Ou, pelo
menos, finge bem que não quer. Jim e eu bem sabemos que estamos à beira de um
colapso. Foi paixão à primeira vista. Logo agora que íamos a caminho da praia
para esperar pelo sol da manhã seguinte. Já não estou tão desolado naquele
instante mas ainda continuo cheio de sede… de sexo, e, pelo que vejo, Jim
também. E estamos despertos. O sol vai esperar. As estrelas também. E o mar.
Por ora seguimos aquela de que não sabemos sequer o nome. Adoramo-la como se
fosse uma daquelas estátuas que preenchem as igrejas. É assim que ela se nos
afigura. Os seus braços são pecaminosos e as suas pernas são longas. E estão
descobertas. A saia é demasiado curta. E está calor. A noite faz transpirar.
Aquela noite faz, sobretudo quando ela se move descendo aquela rua enquanto é
seguida por Jim e por mim. Os nossos cérebros gritam alto uma qualquer canção
antiga.
Flores de sentimentos levam
de volta aos
perdedores recuando em todas as
direcções
dormindo estas horas de loucura
Nunca mais vou acordar bem
disposto.Enjoa-me o cheiro
destas botas.Histórias de animais
nos bosquesnada estúpidosmas
como os índios mostrando-seos
olhos pequenos na noiteconheço
a floresta & a malévola maré da
lua
«Temos um ar divertido não é rapaz?»
Mais-que-perfeito.Esquecido.As canções
são bons estímulos para o riso.
E nada. Ela
nada. Até as pedras da calçada parecem cumprimentá-la no momento em que os seus
elegantes sapatos de salto alto tocam a sua empoeirada cor. Vergam-se à sua
passagem como cachorros pedinchando doces ao seu dono. Jim provoca-me ao
perguntar se eu serei capaz de a fazer reparar em mim. - Como esperas poder alcançar uma raridade destas que não parece dar
tréguas a ninguém - pergunta-me. Eu esboço-lhe apenas um murmúrio e
enchendo-me de coragem desato em passo acelerado para só parar na frente
daquela mulher. - Olá, olá, olá. -
Sou surpreendido e Jim também. Ela cedeu, parou e, primeiro, sorriu, depois não
aguentando mais o esforço que já vinha fazendo desde que encetámos aquela
perseguição, riu e riu e riu mais ainda. Parecia que não queria deixar de rir.
Jim, que a princípio até terá achado alguma graça a toda aquela situação,
fechou o rosto. A reacção tida por aquela mulher, depois de criada tão elevada
expectativa, era para ele considerada demasiado vulgar. Jim tem destas coisas,
raramente se dando por satisfeito com as situações mais naturais. Para ele a
estranheza é sempre mais atraente,
Percorremos um caminho tão
longo à procura disto
E acabámos por deitá-lo a perder
Tínhamos tudo
O que os amantes alguma vez tiveram
Deitámo-lo fora
E não estou triste
Bem, estou louco
eu já sabia
e por isso pedi-lhe para ter calma, que me deixasse tomar conta da situação.
Jim nem me olhou. Sei que me ouviu e o facto de não ter tido nenhuma reacção é
apenas um sinal de consentimento. Aquela mulher não correspondia ao que dela
esperaria, pelo menos por causa da momentânea e espontânea resposta, mas
lendo-lhe os pensamentos tenho a certeza que Jim ainda quer esperar para ver o
que vai suceder a seguir. Completamente desinteressada do que estaríamos a
pensar estava aquela mulher ali especada bem na nossa frente que não quis
perder muito mais tempo. – Como é? Querem
que vos leve a beber a algum lado? – Finalmente, algo que a ambos
entusiasmou após a primeira visão que aos dois tinha deixado água na boca. – Vamos onde quiseres – disse-lhe. – Vou levá-los lá acima às nuvens. Venham
atrás de mim que não se arrependerão. Esta vai ser para os dois uma noite que
não mais irão esquecer. – Confesso que estremeci um pouco quando a ouvi
falar assim e reparei que também Jim voltou à sua melhor cara. Aquela proposta
arrojada era do seu agrado. Típico de Jim. E lá seguimos como duas crianças
agarrados à curta saia da mãezinha. Onde ela nos levar nós vamos. Onde ela nos transportar nós bebemos,
pensei, e tenho a certeza que Jim também. Era bastante cedo e aquela noite
estava extraordinariamente quente. O nosso objectivo primeiro de nos
encaminharmos para a praia não estava metido de parte, mas para já, naquele
momento, estava adiado. Talvez mais tarde. De certeza que sim. Lá chegaríamos.
Na praia, como desejávamos, iremos esticar os corpos, deixar as costas roçar na
areia e sem trocar palavras e conversa vã, apenas pensamentos, iremos saudar um
novo dia. Quem sabe até chorar… Mais tarde, sim. Agora não.
Guardava
nela
O fresco milagre
da
surpresa
corpos de
homens e mulheres, suados, misturavam-se com os nossos. Com grande dificuldade
lá nos íamos mexendo e conquistando palmo a palmo o caminho do bar naquele
recinto onde tínhamos acedido a entrar a convite daquela mulher que até ali nos
guiou mesmo sem nunca nos ter dito o seu nome. Para nós era, continuava a ser,
apenas, aquela mulher vistosa por quem instantes antes nos tínhamos deixado
enfeitiçar ao ponto de pensarmos que nos daria uma noite louca de sexo que
nunca mais iríamos esquecer. Mas, agora, neste momento, no meio de tantos
desnudos troncos femininos, nem Jim nem eu tínhamos a certeza disso. A
excitação era um estado de espírito permanente para qualquer um como nós,
amantes da beleza feminina, ali caídos naquele espaço de diversão nocturna
apinhado até mais não. Ainda assim teimámos em segui-la. E ela levou-nos até
onde nós queríamos. Ao bar. Pedimos cerveja. Gelada. Foi o que nos serviram.
Ela optou por um gin com água tónica.
Armados seguimos rumo ao centro da pista de dança. Em simultâneo acendemos três
cigarros enquanto nos debruçávamos sobre a música que estava a tocar antes de
agitarmos ao mesmo tempo os músculos dos nossos corpos sedentos de acompanharem
os da maioria, transpirados, brilhantes e desconexos, agitando-se apenas ao
sabor da música que talvez para a maior parte deles fosse o menos importante.
Para nós, sobretudo para mim, e para Jim, não.
- Momento de liberdade
interior
quando o espírito está aberto &
o
universo infinito revelado
e a alma se deixa vaguear
deslumbrada & confusa à procura
aqui & ali de mestres e amigos
e durante
alguns, os primeiros instantes, parávamos para escutar. Era sempre assim
naquelas situações. Foi quando deparámos que naquele pequeno palco iluminado
por luzes de várias cores alguém entoava “Like
a Rolling Stone”, numa versão muito semelhante à do Dylan. E então
deixámo-nos ir. Jim, eu, aquela mulher de que ainda não sabíamos sequer o nome,
as cervejas geladas, o gin tónico, o
fumo que nos envolvia e que parecia inundar todas as bocas, narizes, dedos e
tudo o mais, e que nos aconchegava, e aquela voz que rasgava por ali adentro, e
toda aquela gente que se amontoava parecia estar em transe. E nós também.
Quisemos fazer um esforço para ali permanecer mais tempo mas de repente começou
a faltar-nos o ar. Aquela mulher sugeriu que a seguíssemos até à linha de
partida e que lá chegados, se nos apetecesse, poderíamos continuar atrás dela
até à porta de casa. Como dois cães sedentos de paixão e com uma vontade enorme
de saltar para cima de uma cadela com o cio, obedecemos. Voltámos a percorrer o
espaço que anteriormente tínhamos palmilhado mas agora no sentido oposto. E foi
nesse percurso, na volta, que ela nos surpreendeu de uma maneira como até ali
ainda não o tinha feito. Pela primeira vez, desde que a tínhamos visto, aquela
mulher demonstrou-nos que afinal não era apenas uma visão deslumbrante capaz de
nos fazer sentir um desejo animalesco, mas muito mais que isso. Durante aquele
trajecto que fizemos em passada suave e tranquila, com aquilo que nos foi
dizendo mostrou-nos que para além de umas pernas capazes de endoidecer, aquela
mulher tinha muito mais para dar, o que a tornava a partir dali mais perigosa
do que inicialmente desejaríamos. A inteligência é uma qualidade não nos era
apetecida no início daquela noite, pelo menos naquele momento em que a
vislumbrámos pela primeira vez. – Vou
levá-los a um sítio onde até hoje nunca imaginaram chegar – disse-nos. – Como sabes que algum dia quisemos lá ir?
– perguntei. – Não precisaram de dizer
nada. Nunca iriam precisar de dizer. Bastou encontrá-los, vê-los e ouvi-los
para perceber. Foi quanto bastou – atirou, sem rodeios. A mim pareceu-me
arrogante a sua postura, aquela convicção que as palavras ditas continham. Não
tenho a certeza se Jim pensaria como eu. Não o vi esboçar qualquer reacção.
Apenas se deixava ir, e eu, quase sem querer, também. Ir ao lugar que aquela
mulher nos anunciou sem dizer na verdade onde. Ao sítio onde até hoje nunca
imaginámos chegar, era o que sabíamos.
Naquela viagem, durante algum tempo,
Anabela não fez parte dos meus pensamentos até que para os lados de Torres
Vedras os primeiros acordes de “Wintertime
Love trouxeram-me à memória os dias em que nos conhecemos.
No primeiro momento em que acertei o
meu olhar com o dela, em pleno Blues Cafe
apinhado de gente, senti uma vontade enorme de comê-la logo ali. Durante os
breves segundos daquela insistente e cúmplice troca de olhares, acompanhada por
um mal disfarçado sorriso que me deixou enfeitiçado, senti uma atracção física
tão forte que só descansei quando praticamente a obriguei a deixar-me levá-la
até casa às tantas da madrugada, não aceitando teimosamente como desculpa o
facto de me repetir vezes sem conta que tinha a cozinha e o quarto completamente
de pantanas. E eu queria lá saber disso?
Os primeiros tempos passados ao lado de Anabela acabaram por
ser simplesmente fantásticos e extraordinariamente revigorantes. É também
verdade que anteriormente não tinha tido grandes experiências amorosas e o
tempo máximo das relações que tinha vivido raramente chegavam à celebração do
primeiro aniversário. O relacionamento mais longo da minha vida – catorze meses
– estava sepultado num liceu.
Tinha agora trinta e seis anos e já
vivia com Anabela ia para dois e qualquer coisa. Chegou a passar-me até pela
cabeça que a idade estava a fazer-me assentar. Mesmo a minha mãe, que toda a
vida viveu em Alpedrinha e nunca se deslocava a Lisboa, fazia questão de
enviar, pelo Natal e pela Páscoa, postais de boas-festas endereçados à Anabela.
Julgava, por ventura, que eu tinha definitivamente tomado juízo. De facto, a dona Arminda – como a trato desde que me
lembro – não merecia um filho assim tão desnaturado. Deixei a terra no dia em
que fui incorporado para cumprir os dezoito meses de serviço militar e fixei-me
a partir daí perto de Lisboa. Nos últimos dezasseis anos terei ido uma dúzia de
vezes – se tanto – visitá-la. E a pobre mulher merecia mais. O meu pai morreu
jovem, numa data que relembro com facilidade: 3 de Julho de 1971. E a dona Arminda, na altura apenas com os
vinte e três anos, teve de fazer das tripas-coração para me criar, a mim, o
desnaturado que só se lembra dela quatro vezes por ano: no aniversário, no dia
da mãe, no Natal e no dia em que o marido partiu e para sempre tirou o sorriso
daquele rosto que, diziam, era dos mais deslumbrantes das beiras, desde a
Guarda a Castelo Branco. Três de Julho é o dia mais difícil da vida da dona Arminda. Sei como ela tem
dificuldades em passá-lo e, por isso, eu não falhava tentando sempre
levantar-lhe um pouco o ânimo durante a curta conversa ao telefone que tínhamos
e que se resumia normalmente a um rol de perguntas desfiadas por ela e de meias
respostas da minha parte. Aliás, como sucedeu há precisamente meia dúzia de dias.
Da situação, enfim, triste por ter
ficado sem pai muito cedo tinha resultado uma coincidência que considerava no
mínimo insólita e que só tinha dado conta há pouco tempo - o absurdo acaso do
dia da morte de Jim Morrison em Paris em 3 de Julho de 1971. Não era que isso
me tivesse tirado alguma vez o sono, mas valeu-me, pelo menos, períodos de
grande reflexão quando o descobri enquanto levava a cabo aquele trabalho que
tinha feito.
Aliás, os dois não tinham, nem de
perto, qualquer outra coisa em comum. Um tinha sido o mito de uma geração.
Louco, intragável, perdido, indomável, um resistente capaz de abandonar tudo
por nada e que acabou por morrer no interior de uma banheira em Paris, depois
de mais uma noite de excessos, com apenas vinte sete anos. E o meu pai, que
nunca chegou a sair do circuito Alpedrinha/Fundão/Alpedrinha,
morreu com um ataque cardíaco fulminante e os únicos excessos que se lhe
conheciam eram o trabalho e a dedicação à família. Morreu durante o sono. Tinha
apenas vinte sete anos.
Raios
a partam. Não estou mais para a aturar. Não fala e não me ouve. Que se lixe(!)
ela e os que lhe enchem a cabeça. Sempre lhe disse que aquilo que tinha era
aquilo que via. Nunca lhe prometi nada. Mas assim não dá mais.
Um princípio de noite escaldante.
- Nunca mais me pões a vista em cima –
gritei ao mesmo tempo que peguei nas chaves do carro que estavam em cima da
pequena mesa junto à entrada. - Não te preocupes com o sítio onde vou dormir e
nem sequer precisas de mudar a fechadura, virei cá buscar as minhas coisas
quando quiseres.
E saí batendo com a porta de tal
maneira que muitos dos vizinhos do prédio que estariam a jantar naquela altura
ter-se-ão engasgado com o susto.
O desnorte com que abandonei o
apartamento que partilhei durante dois anos e meio com Anabela fez-me dar duas
voltas ao quarteirão à procura do carro. Tinha-o estacionado poucas horas antes
e já não me lembrava onde. Era sempre assim qualquer que fosse o dia da semana
ali por aquelas bandas do Bairro Alto.
Finalmente, depois de uma meia dúzia de
voltas, alguns abrandamentos de passada para ordenar as ideias e a memória, lá
dei com o Éfe Dido (nome íntimo que
lhe atribuí pelo facto das letras de matrícula serem FD) numa íngreme travessa
entre dois carros que o tinham entalado de maneira absurda. Ainda me passou pela
cabeça que só com a ajuda de um guindaste conseguiria tirá-lo dali sem amolgar
os pára-choques.
O esforço da manobra que fui obrigado a
efectuar acabou por me fazer esquecer por momentos a raiva que sentia e o que
me tinha levado a sair de casa no momento em que me ia sentar à mesa para
jantar. Mas foi uma raiva contida por muito pouco tempo. Ao passar frente à
porta do prédio de Anabela ainda me dei ao trabalho de abrir rapidamente o
vidro do carro para gritar:
– Bardamerda
– como se ela me ouvisse.
Quase sem querer dei comigo na calçada de Carriche a caminho
da A8, na direcção de São Martinho do Porto.
A discussão com Anabela tinha começado
precisamente por lhe ter dito que queria ir sozinho passar uns dias a São
Martinho do Porto para assentar ideias sobre o futuro da nossa relação.
Andávamos com falta de paciência e cansados e até já tínhamos conversado sobre
a possibilidade de um afastamento ainda que fosse por pouco tempo. Só que para
Anabela esse período de hibernação tinha de ser na mesma cidade.
E a discussão ficou para lá de feia
quando ela me atirou com o cinzeiro, repleto de pontas de cigarro, para cima
dos pés e vociferou:
– Vai mas não voltes.
Há dois ou três meses que as coisas
tinham começado a ficar estranhas. Na verdade, Anabela nunca compreendeu que o
meu trabalho de freelancer não tinha
horas, folgas, fins-de-semana e nem sequer feriados. Nos primeiros dois anos de
relação escondeu e conteve o stress
que tal modus vivendi lhe causava e
foi acumulando dias, meses de frustração e de isolamento, até que a partir de
certa altura começou a embirrar por tudo e por nada sempre que lhe dizia não
saber bem a que horas iria chegar a casa. Às vezes, quando voltaria.
Em Loures, quando abrandei um pouco
para atravessar a Via Verde, olhei para o relógio no tablier do carro e reparei que pouco passava das nove e meia.
Contudo, era ainda possível vislumbrar o azul do céu, um pouco escurecido. O
dia tinha estado quente e a noite também prometia altas temperaturas. O meu ar
condicionado era a janela do lado do pendura meio aberta, já que a minha não
dava jeito por causa da velocidade e do barulho do vento mas, na verdade, isso
não ajudava muito ao arrefecimento no interior do carro. Sentia as costas
coladas à camisa e ao banco. Nunca gostei muito do tempo quente, pelo menos na
cidade. No Verão, sempre que conseguia e me era possível, fugia para São
Martinho do Porto, em vez de seguir para Sul. O Algarve tinha sempre calor e
gente a mais para o meu gosto.
Com alguma dificuldade, no meio de
tanta papelada e coisas que já deviam estar no lixo há muito tempo, consegui
arrancar uma cassete que estava lá bem no fundo do porta-luvas. Meti a fita no
leitor e comecei a ouvir os acordes iniciais de “Waiting For The Sun” dos The Doors.
“Hello, I Love You”
– grande malha.
Acendi o primeiro cigarro daquela viagem que devia durar cerca
de uma hora até ao destino. Por entre duas profundas bafuradas senti o esboço
de um sorriso no rosto quando instantaneamente me lembrei de um trabalho que
tinha feito há pouco tempo a propósito dos trinta anos de edição daquele disco,
em que tinha tentado desmontar todas as faixas nele contidas através de
diálogos imaginados com Jim Morrisson, matéria que vendi a uma revista
especializada e destinada a um público teenager
esfomeado em perpetuar alguns mitos mesmo que deles em vida pouco ou nada
tenham conhecido, ouvido e visto.
Morrison foi sempre uma personagem que
me intrigou. Juntando isso ao facto de gostar da música dos The Doors, aquele
foi um trabalho que me deu enorme prazer.
A vida, mas sobretudo a morte, daquele
tipo que consumia drogas e álcool desmedidamente, que queria ser poeta em vez
de cantor, que abominava a fama mas tinha atitudes que só a aumentavam quase
sem se dar conta, tinham-me dado pano para mangas durante algumas semanas. (continua)
“(…) Ninguém se
consegue lembrar de um romance inteiro. Ninguém consegue descrever um filme,
uma escultura, uma pintura, mas enquanto houver seres humanos, as canções e as
poesias sobreviverão.
Se a minha poesia pretende atingir alguma coisa, é libertar
as pessoas dos limites em que se encontram e que sentem.” – Jim
Dizem que morreu há 45 anos. Talvez não.
Criei um blog para quem gosta de Ler Devagar.
James Douglas Morrison, aliás Jim Morrison, ou simplesmente
Jim, para amigos, discípulos e fãs, nasceu em Melbourne, Florida, em 8 de
Dezembro de 1943 e morreu em Paris, França, em 3 de Julho de 1971. Uma morte
prematura e misteriosa, uma vida à beira do abismo ou ultrapassando os limites,
tornaram-no mito, lenda viva do rock & roll, já lá vão quatro décadas.
Este blog contém excertos traduzidos de “Wilderness”, um
conjunto de poemas inéditos de Jim Morrison, dispersos em papéis e cadernos, e
traduções livres das músicas do álbum “Waiting for the Sun”, dos The Doors,
editado pela Elektra, em 1968. Quase tudo o resto que aqui se pode ler é ficção
e provavelmente só tem cabimento para o seu autor.
-
O que é a conexão?
- É quando 2 movimentos que julgamos
excluírem-se mutuamente & infinitos, se encontram num momento.
- Do Tempo?
- Sim.
- O tempo não existe.
Não existe tempo.
- O tempo é uma plantação ordenada.
Entro e saio do bar de má reputação. Passaram dois ou três
minutos no máximo. Logo à chegada uma mulher de aspecto duvidoso com uma dezena
de pregos espalhados pela face a mim se dirigiu oferecendo-me aquela que iria
ser a melhor noite da minha vida. Virei-lhe costas. Inicialmente pensei ir ao
encontro do homem grande e escuro com o umbigo encostado ao balcão para lhe
pedir algo forte para emborcar. Desisti. Saí porta fora mal esta se tinha
imobilizado após a minha chegada. A noite na cidade está quente. Os corpos
fervilham. Agitam-se, até nas ruas. Eu estou desolado mas bem desperto e
continuo cheio de sede. Deparo com Jim ao virar da esquina. Seguimos lado a
lado. Caminhamos rodeados de sombras na direcção da praia. Apetece-nos o cheiro
do mar. A visão sublime das luzes do céu descoberto daquela noite generosa sem
lua que nos levará a esperar pelo sol da manhã seguinte sem grande dificuldade.
E partilhamos frases que de repente não parecem fazer qualquer sentido,
A Noite começou
cheia
de sossego
Não consigo descrever o
modo
como ela está vestida
Ela acederá a estranhas
solicitações
Quaisquer sugestões
O que quer que agrade ao seu conviva
apenas pela
demora em encontrar sintonia. Eu continuo cheio de sede. Jim prefere afastar-se
da multidão. Seguimos por isso a caminho da costa. E vamos. E à medida que nos
vamos aproximando começamos a sentir a leve brisa marítima a roçar-nos as
faces. E as luzes vão desvanecendo. E o movimento diminuindo. Agora, a cada
olhar que com o nosso se cruza damos sem querer a máxima importância. (continua)