Raios
a partam. Não estou mais para a aturar. Não fala e não me ouve. Que se lixe(!)
ela e os que lhe enchem a cabeça. Sempre lhe disse que aquilo que tinha era
aquilo que via. Nunca lhe prometi nada. Mas assim não dá mais.
Um princípio de noite escaldante.
- Nunca mais me pões a vista em cima –
gritei ao mesmo tempo que peguei nas chaves do carro que estavam em cima da
pequena mesa junto à entrada. - Não te preocupes com o sítio onde vou dormir e
nem sequer precisas de mudar a fechadura, virei cá buscar as minhas coisas
quando quiseres.
E saí batendo com a porta de tal
maneira que muitos dos vizinhos do prédio que estariam a jantar naquela altura
ter-se-ão engasgado com o susto.
O desnorte com que abandonei o
apartamento que partilhei durante dois anos e meio com Anabela fez-me dar duas
voltas ao quarteirão à procura do carro. Tinha-o estacionado poucas horas antes
e já não me lembrava onde. Era sempre assim qualquer que fosse o dia da semana
ali por aquelas bandas do Bairro Alto.
Finalmente, depois de uma meia dúzia de
voltas, alguns abrandamentos de passada para ordenar as ideias e a memória, lá
dei com o Éfe Dido (nome íntimo que
lhe atribuí pelo facto das letras de matrícula serem FD) numa íngreme travessa
entre dois carros que o tinham entalado de maneira absurda. Ainda me passou pela
cabeça que só com a ajuda de um guindaste conseguiria tirá-lo dali sem amolgar
os pára-choques.
O esforço da manobra que fui obrigado a
efectuar acabou por me fazer esquecer por momentos a raiva que sentia e o que
me tinha levado a sair de casa no momento em que me ia sentar à mesa para
jantar. Mas foi uma raiva contida por muito pouco tempo. Ao passar frente à
porta do prédio de Anabela ainda me dei ao trabalho de abrir rapidamente o
vidro do carro para gritar:
– Bardamerda
– como se ela me ouvisse.
Quase sem querer dei comigo na calçada de Carriche a caminho
da A8, na direcção de São Martinho do Porto.
A discussão com Anabela tinha começado
precisamente por lhe ter dito que queria ir sozinho passar uns dias a São
Martinho do Porto para assentar ideias sobre o futuro da nossa relação.
Andávamos com falta de paciência e cansados e até já tínhamos conversado sobre
a possibilidade de um afastamento ainda que fosse por pouco tempo. Só que para
Anabela esse período de hibernação tinha de ser na mesma cidade.
E a discussão ficou para lá de feia
quando ela me atirou com o cinzeiro, repleto de pontas de cigarro, para cima
dos pés e vociferou:
– Vai mas não voltes.
Há dois ou três meses que as coisas
tinham começado a ficar estranhas. Na verdade, Anabela nunca compreendeu que o
meu trabalho de freelancer não tinha
horas, folgas, fins-de-semana e nem sequer feriados. Nos primeiros dois anos de
relação escondeu e conteve o stress
que tal modus vivendi lhe causava e
foi acumulando dias, meses de frustração e de isolamento, até que a partir de
certa altura começou a embirrar por tudo e por nada sempre que lhe dizia não
saber bem a que horas iria chegar a casa. Às vezes, quando voltaria.
Em Loures, quando abrandei um pouco
para atravessar a Via Verde, olhei para o relógio no tablier do carro e reparei que pouco passava das nove e meia.
Contudo, era ainda possível vislumbrar o azul do céu, um pouco escurecido. O
dia tinha estado quente e a noite também prometia altas temperaturas. O meu ar
condicionado era a janela do lado do pendura meio aberta, já que a minha não
dava jeito por causa da velocidade e do barulho do vento mas, na verdade, isso
não ajudava muito ao arrefecimento no interior do carro. Sentia as costas
coladas à camisa e ao banco. Nunca gostei muito do tempo quente, pelo menos na
cidade. No Verão, sempre que conseguia e me era possível, fugia para São
Martinho do Porto, em vez de seguir para Sul. O Algarve tinha sempre calor e
gente a mais para o meu gosto.
Com alguma dificuldade, no meio de
tanta papelada e coisas que já deviam estar no lixo há muito tempo, consegui
arrancar uma cassete que estava lá bem no fundo do porta-luvas. Meti a fita no
leitor e comecei a ouvir os acordes iniciais de “Waiting For The Sun” dos The Doors.
“Hello, I Love You”
– grande malha.
Acendi o primeiro cigarro daquela viagem que devia durar cerca
de uma hora até ao destino. Por entre duas profundas bafuradas senti o esboço
de um sorriso no rosto quando instantaneamente me lembrei de um trabalho que
tinha feito há pouco tempo a propósito dos trinta anos de edição daquele disco,
em que tinha tentado desmontar todas as faixas nele contidas através de
diálogos imaginados com Jim Morrisson, matéria que vendi a uma revista
especializada e destinada a um público teenager
esfomeado em perpetuar alguns mitos mesmo que deles em vida pouco ou nada
tenham conhecido, ouvido e visto.
Morrison foi sempre uma personagem que
me intrigou. Juntando isso ao facto de gostar da música dos The Doors, aquele
foi um trabalho que me deu enorme prazer.
A vida, mas sobretudo a morte, daquele
tipo que consumia drogas e álcool desmedidamente, que queria ser poeta em vez
de cantor, que abominava a fama mas tinha atitudes que só a aumentavam quase
sem se dar conta, tinham-me dado pano para mangas durante algumas semanas.
(continua)
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário