Naquela viagem, durante algum tempo,
Anabela não fez parte dos meus pensamentos até que para os lados de Torres
Vedras os primeiros acordes de “Wintertime
Love trouxeram-me à memória os dias em que nos conhecemos.
No primeiro momento em que acertei o
meu olhar com o dela, em pleno Blues Cafe
apinhado de gente, senti uma vontade enorme de comê-la logo ali. Durante os
breves segundos daquela insistente e cúmplice troca de olhares, acompanhada por
um mal disfarçado sorriso que me deixou enfeitiçado, senti uma atracção física
tão forte que só descansei quando praticamente a obriguei a deixar-me levá-la
até casa às tantas da madrugada, não aceitando teimosamente como desculpa o
facto de me repetir vezes sem conta que tinha a cozinha e o quarto completamente
de pantanas. E eu queria lá saber disso?
Os primeiros tempos passados ao lado de Anabela acabaram por
ser simplesmente fantásticos e extraordinariamente revigorantes. É também
verdade que anteriormente não tinha tido grandes experiências amorosas e o
tempo máximo das relações que tinha vivido raramente chegavam à celebração do
primeiro aniversário. O relacionamento mais longo da minha vida – catorze meses
– estava sepultado num liceu.
Tinha agora trinta e seis anos e já
vivia com Anabela ia para dois e qualquer coisa. Chegou a passar-me até pela
cabeça que a idade estava a fazer-me assentar. Mesmo a minha mãe, que toda a
vida viveu em Alpedrinha e nunca se deslocava a Lisboa, fazia questão de
enviar, pelo Natal e pela Páscoa, postais de boas-festas endereçados à Anabela.
Julgava, por ventura, que eu tinha definitivamente tomado juízo. De facto, a dona Arminda – como a trato desde que me
lembro – não merecia um filho assim tão desnaturado. Deixei a terra no dia em
que fui incorporado para cumprir os dezoito meses de serviço militar e fixei-me
a partir daí perto de Lisboa. Nos últimos dezasseis anos terei ido uma dúzia de
vezes – se tanto – visitá-la. E a pobre mulher merecia mais. O meu pai morreu
jovem, numa data que relembro com facilidade: 3 de Julho de 1971. E a dona Arminda, na altura apenas com os
vinte e três anos, teve de fazer das tripas-coração para me criar, a mim, o
desnaturado que só se lembra dela quatro vezes por ano: no aniversário, no dia
da mãe, no Natal e no dia em que o marido partiu e para sempre tirou o sorriso
daquele rosto que, diziam, era dos mais deslumbrantes das beiras, desde a
Guarda a Castelo Branco. Três de Julho é o dia mais difícil da vida da dona Arminda. Sei como ela tem
dificuldades em passá-lo e, por isso, eu não falhava tentando sempre
levantar-lhe um pouco o ânimo durante a curta conversa ao telefone que tínhamos
e que se resumia normalmente a um rol de perguntas desfiadas por ela e de meias
respostas da minha parte. Aliás, como sucedeu há precisamente meia dúzia de dias.
Da situação, enfim, triste por ter
ficado sem pai muito cedo tinha resultado uma coincidência que considerava no
mínimo insólita e que só tinha dado conta há pouco tempo - o absurdo acaso do
dia da morte de Jim Morrison em Paris em 3 de Julho de 1971. Não era que isso
me tivesse tirado alguma vez o sono, mas valeu-me, pelo menos, períodos de
grande reflexão quando o descobri enquanto levava a cabo aquele trabalho que
tinha feito.
Aliás, os dois não tinham, nem de
perto, qualquer outra coisa em comum. Um tinha sido o mito de uma geração.
Louco, intragável, perdido, indomável, um resistente capaz de abandonar tudo
por nada e que acabou por morrer no interior de uma banheira em Paris, depois
de mais uma noite de excessos, com apenas vinte sete anos. E o meu pai, que
nunca chegou a sair do circuito Alpedrinha/Fundão/Alpedrinha,
morreu com um ataque cardíaco fulminante e os únicos excessos que se lhe
conheciam eram o trabalho e a dedicação à família. Morreu durante o sono. Tinha
apenas vinte sete anos.
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