quinta-feira, 5 de maio de 2016

fx. 3 - not to touch the earth


Não tocar a terra, não olhar o sol, nada resta a fazer a não ser correr, correr, correr. Vamos correr, vamos correr, como que gritávamos em uníssono sem das nossas vozes se ouvir sequer um pequeno murmúrio. Apenas trocávamos pensamentos e passávamos à acção. E corremos, corremos. E enquanto corríamos desenfreadamente iniciámos a Criação a partir do Nada que ainda faltava criar. Uma casa na colina, a lua que brilha, as sombras das árvores testemunhando a brisa selvagem. – Vamos, corre comigo, vamos correr – gritámos porém daquela vez bem alto e continuámos a correr mais incentivados ainda pela resposta oferecida pelo eco das nossas vozes: corre comigo, corre comigo, corre comigo, vamos correr.



Ninguém concebeu a existência;

aquele que pensa que o fez

Que avance



por isso é impossível que nos cansemos e só por isso nada nos impediria de continuar, mas Jim e eu resolvemos parar de repente no topo da colina para admirar aquela mansão que agora constatamos ser confortável, mas não é um conforto apenas aceitável daqueles em que se usa a expressão por uma questão de simpatia, não, naquela mansão os quartos e os confortos são ricos, os braços da cadeira luxuosa são vermelhos, mas ninguém vai saber disso ao olhar apenas do lado de fora. Estamos a assinar a nossa Criação, assim tudo o que nós queremos é permitido, assim no livro da vida escrevemos o que nos apetece, serão as memórias que queremos lembrar. Descemos a colina a bom ritmo e deparamos com o cadáver do presidente no carro que é conduzido pelo motorista. Afinal, tanto conforto e ele jaz morto e deixa o mundo num estado pegajoso como um motor que vai rolando numa pestilenta mistura de cola e alcatrão. Mas nós não desarmamos e vamos andando, não vamos muito longe é certo, vamos apenas até ali para Oriente. Depois de o presidente ter sido assassinado, estamos preparados para conhecer o Czar. Neste novo tempo que nos deram, nesta nova vida que agora reinventamos sabemos que alguns bandidos vivem à beira do lago e que a filha do ministro está apaixonada pela cobra que vive num poço à beira da estrada. Apetece-me gritar – acorda, miúda, estamos a chegar a casa – e Jim incentiva – vamos! – mas eu teimo que deveríamos ver os portões de manhã, que naquele momento deveríamos estar dentro da noite,



         «Alguma vez viste Deus?»

                        - uma mandala. Um anjo simétrico.



            Sentiste? sim. Fodendo. O Sol.

            Ouviste? Música. Vozes.

            Tocaste? um animal. a tua mão.

            Saboreaste? Carne rara, cereais, água

                                    & vinho.



Porque o sol (queima), sol (queima), sol (queima), em breve (lua), em breve (lua), em breve (lua) – eu vou apanhar-te – gritou Jim e eu provoquei – em breve! – e o eco fez-se ouvir de novo: em breve! em breve!... Jim teve então a primeira atitude na nova vida que me surpreendeu – eu sou o Rei Lagarto, eu posso fazer qualquer coisa – vociferou com raiva pouco contida. Vi-o cerrar os olhos como se estivesse a concentrar-se em algo que estivesse para acontecer, ordenou que cerrasse os meus, que o imitasse e que assim o ajudasse a tornar real o que desejava naquele instante. Foi então que senti a mente penetrar num espaço que nunca antes tinha imaginado com leões a passear pelas ruas, cães com o cio a caminhar sem destino, outros raivosos e com grandes bocas cheias de baba. E vi Jim como uma fera aprisionada no coração daquela cidade imaginária. Tinha a certeza que se abrisse os olhos tudo aquilo terminaria e voltaríamos à nossa vida, ou ao que para ali nos tinha transportado, senti que se estivesse a sofrer poderia fazê-lo a qualquer momento mas preferi permanecer para tentar perceber o que Jim me queria mostrar ou dar a conhecer. Apontou-me a sua mãe, cujo corpo estava ali a apodrecer naquele chão que fervia debaixo de um sol escaldante virando de seguida as costas e deixando a cidade, desceu para sul e atravessou a fronteira deixando aquele caos e toda a desordem para trás dos ombros. Alucinante a velocidade com que tudo estava a decorrer naquele encontro numa qualquer outra dimensão por esforço de Jim à qual eu estava a dar a cobertura que ele me tinha solicitado e que me transportou no momento seguinte para um despertar num hotel verde com uma criatura estranha a rosnar ao seu lado e com o suor a cobrir toda a sua pele brilhante. – Estão todos aqui? – ouço o grito vindo sabe-se lá de onde, e outra vez a mesma voz: - a cerimónia está prestes a começar! A seguir um silêncio ensurdecedor rodeou o instante. A estranha criatura fazendo valer tudo o que eu já não conseguia imaginar gritou de tal modo que me congelou, a mim e a Jim que também não esperava ser surpreendido por coisa semelhante: - ACORDA! - fê-lo quase ao ouvido de Jim – tu não consegues lembrar-te onde terminou o sonho? – A serpente era de um dourado muito claro, muito brilhante e enroscada. Nós tínhamos medo de tocá-la e aqueles lençóis onde Jim tinha acabado de despertar eram como se de repente se tivessem transformado em grades de prisões quentes como a morte. E ela estava ao seu lado, não era velha, mas seria jovem(?), tinha cabelo vermelho escuro, a pele branca e macia. Jim resolve finalmente tomar uma atitude e inicia uma corrida desenfreada a caminho do espelho da casa de banho. – Olha! – digo-lhe – ela está a vir para aqui. – Jim olha-me de frente, sinto os seus olhos a perfurarem os meus sem pedir licença e como que anuncia - eu não posso viver em cada século lento dos seus movimentos, mas gosto de, como ela, encostar o meu rosto no cimento gelado do chão e sentir como é bom o sangue frio de uma picada e o brando assobio das serpentes na chuva. Sabes – continua – uma vez participei num pequeno jogo e senti um enorme gozo por gostar de rastejar de volta à minha mente. Acho que sabes de que jogo falo, estou a falar do jogo que se chama “fica louco”. Devias experimentar esse pequeno jogo. É só fechar os olhos e esqueceres o teu nome, esqueceres o mundo, as pessoas e então verás que ergueremos uma torre diferente. Esse pequeno jogo é divertido. É só fechar os olhos, não há como perder. Sentes-te bem, ficas bem, livramo-nos do controle e vamos mais além. Regressamos às profundezas da mente, regressamos para lá da dor, estaremos de volta ao tempo em que ainda não havia chuva, porque agora nestes tempos a chuva cai com a menor dificuldade sobre a cidade e sobre as cabeças de todos nós e no labirinto das correntes. Lá no fundo, vemos a calma e sobrenatural presença dos nervosos habitantes da colina nos nobres montes das redondezas e vemos répteis em abundância, fósseis, cavernas, o ar fresco das montanhas. E repara, todas as casas seguem o mesmo modelo, as janelas cerradas, o carro feroz trancado até ao amanhecer. Estão todos a dormir agora, os tapetes em silêncio, os espelhos vazios, a poeira cega em cima da cama dos casais legitimados feridos nos lençóis e as filhas eufóricas com olhos de esperma nos seus mamilos. Espera!... – gritou inesperadamente como se tivesse visto algo que o assustou. – Houve uma carnificina aqui, não pares para falar ou olhar em volta, as tuas luvas e o teu leque estão no chão, nós vamos deixar a cidade agora e vamos a correr. Tu és a pessoa com quem eu quero ficar.



         Ajudem-nos! Ajudem-nos! Salvem-nos!

            Salvem-nos!

            Estamos a morrer, rapaz, faz alguma coisa.

            Tira-nos daqui!

            Salva-nos!

            Estou a morrer.

            O que fizemos desta vez!

            Fizemo-lo, rapaz, nós perpetrámos o



            Ajudem-nos!

            É o nosso fim, rapaz.

            Adoro-te rapaz.

            Adoro-te rapaz.

            Adoro-te porque tu és tu.



         Mas tens de nos ajudar.

            O que fizemos rapaz?

            O que fizemos desta vez?



Pobre daquele que nunca sentiu uma ponta de saudade ou uma certa nostalgia. Na verdade, mais não é do que alguém que nunca viveu a vida com intensidade e prazer. Nós viemos de rios e estradas, florestas e cascatas, de Carson e Springfield, da cativante Phoenix. – Alto! – ouvimos gritar bem atrás de nós. Jim sabia bem quem era e nem precisou de virar sobre si o corpo para começar a dizer: - Posso-lhes dizer os nomes do Reino, posso-lhes dizer as coisas que vocês sabem escutando um punhado de silêncio, escalando vales para chegar à sombra. - Novo grito, agora com o sopro a roçar as nossas nucas: - Quem és? – Jim permanecia imóvel, de olhos cerrados, de costas voltadas para quem ali tão perto tentava perceber quem éramos e o que estávamos a fazer por aquelas bandas. – Por sete anos eu vivi nos livres palácios do exílio, participei em estranhos jogos com as meninas da ilha, agora voltei à terra do belo e do forte e do sábio. – Findas as palavras de Jim, virámo-nos e não deparámos com um gigante como provavelmente seria o dono daquela grossa voz que pouco antes nos tinha gritado, mas com dezenas de homens, mulheres e crianças que bruscamente recuaram dois ou três passos e se ajoelharam perante a nossa presença.



         As pessoas precisam de Fios

                        Escritores, heróis, estrelas,

                        dirigentes

            Para dar sentido à vida.

            O barco de areia de uma criança virado

                        para o sol.

            Soldados de plástico na guerra suja

                        em miniatura. Fortalezas.

            Navios de Guerra de Garagem.



- Irmãos e irmãs na floresta pálida, filhos da noite, quem de entre vocês aceita participar nesta caçada? – pergunta Jim numa voz que ecoa a muitos milhares de quilómetros do local onde nos encontramos. – Agora a noite vem com a sua legião púrpura – continua dizendo – recolham às vossas tendas e aos vossos sonhos. Amanhã chegamos à minha cidade natal e eu quero estar preparado,



         Fico a pé toda a noite

            a fumar e a conversar

            Recordo os mortos & espero

                                               a manhã

            Voltarão os nomes & os rostos

                                               dos que me eram chegados?

            Terá a floresta de prata fim?

                                                                                                             (continua)

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