segunda-feira, 20 de junho de 2016

As portas ou a morte de um mito (primeira parte)


Quando me aproximei da entrada do pequeno bar, exceptuando a ausência de nevoeiro, tudo me pareceu exactamente na mesma como na véspera. Ainda hesitei por momentos. Ocorreu-me que poderia ser um abuso da minha parte dirigir-me ali mais uma vez sozinho. Afinal, aquele espaço era, acima de tudo, a casa do António. O barulho que vinha do interior era também o mesmo mas desta vez eu já sabia que era apenas da televisão – corridas de cavalos, quase de certeza.

Quando, finalmente, decidi que devia bater à porta acabei surpreendido com a sua brusca abertura e com a presença de rompante do António que me assustou e fez com que perdesse o contacto com o chão.

- Ah, és tu! Gostaste de cá estar, hein? – vociferou aceleradamente.

- Não quero incomodar – respondi.

- Que conversa é essa? Para gente amiga esta casa está sempre aberta – atirou em três tempos – só que eu tenho que ir lá abaixo a São Martinho do Porto para falar com uma pessoa.

- Mas está tudo bem? – perguntei depois de perceber uma expressão carregada e de preocupação no rosto do António.

- Nem por isso. Aconteceu uma coisa estúpida. Estava ali nas calmas a ler o jornal, tocou o telefone e deram-me a notícia de dois tipos com quem trabalhei que morreram… uma merda, pá... Dois homens bons. Um era daqui, a miúda dele trabalha ali… tenho que ir lá abaixo falar com a família.

- Quer que vá consigo?

- Obrigado, não vale a pena, eu vou lá num instante, deixa-te ficar por aqui. Vieste beber um copo e é isso que vais fazer. A casa é tua, aliás, a garrafa que ontem não despejaste ainda está no mesmo sítio… e o copo também. Por isso, serve-te, que eu não demoro – atirou visivelmente nervoso.

Resolvi entrar depois de ver desaparecer o seu carro em grande velocidade no meio daquela escuridão da serra. Fechei a porta e, imediatamente, percebi que no mesmo banco, na mesma posição e a ver exactamente a mesma programação televisiva, estava o sujeito da noite anterior. Estranhei que o António não tivesse mencionado o facto de estar outra pessoa naquele espaço, mas não me preocupei muito por isso. Larguei as chaves do carro em cima do balcão ao lado de uma espécie de bloco de notas que se encontrava aberto e onde era possível observar alguns rabiscos. Disse boa-noite mas talvez por causa do barulho que saía do televisor não ouvi resposta alguma.

Ao sentar-me consegui ler o que estava escrito naqueles apontamentos. Eram palavras soltas: pescadores portugueses… um madeirense… afogados ao largo do Cabo… acidente… António de Jesus Castro… São Martinho do Porto… dono da embarcação… João Olegário Tomás… Paul do Mar… Slangkop/Scarborough… uma semana… decorrem buscas… seis mortos… Ao ler aquelas anotações soltas recordei-me do que António me tinha contado sobre os muitos momentos de terror passados em alto mar. Livrou-se de boa, pensei. Afastei um pouco o bloco e reparei, tal como tinha dito, que ali estavam em cima do balcão o copo que eu tinha usado e a mesma garrafa de uísque. Precisamente no mesmo sítio. Servi-me. Acendi um cigarro. Tentei distrair-me a olhar para a televisão, para aquelas corridas de cavalos que mais pareciam não ter fim mas cansei-me depressa e optei por me perder a observar detalhadamente as muitas fotografias que estavam penduradas na parte interior do balcão e que coabitavam com as garrafas nas prateleiras. Em todas estava o António, bastante mais novo, sempre acompanhado por outros homens. Curiosamente, reparei que era sempre o mesmo que se apresentava ao seu lado em todas as fotografias. Talvez um grande amigo, pensei.

Ao fitar com redobrada atenção a cara daquele parceiro do António senti algo de estranho. De repente, pareceu-me alguém que eu conhecia, não me lembrava era de onde.

                                                                                                  (continua)

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