quinta-feira, 23 de junho de 2016

As portas ou a morte de um mito (segunda parte)


Estava tão empenhado e concentrado a tentar recordar onde é que já tinha visto aquela figura que apanhei um susto que me fez entornar o copo de uísque no momento em que ouvi uma voz mesmo ao meu lado a perguntar:

- Que estás aqui a fazer?

A restabelecer-me daquela inesperada situação e ao mesmo tempo a limpar com um guardanapo de papel o líquido que tinha saltado do copo para cima do balcão apenas consegui balbuciar:

- Estou só a beber um copo. O António teve que sair por momentos, disse-me para entrar e esperar. Já estive aqui ontem.

- Eu sei, tenho olhos na cara, vi-te sair – disse-me.

Naquele instante percebi que, embora mais velho, aquele era o homem que estava na maior parte das fotografias ao lado do António. Magro, muito magro e, certamente, mais baixo do que eu, com o cabelo completamente grisalho, um olhar intenso, marcante, triste, misterioso, quase intimidante e uma voz forte e ao mesmo tempo arrebatadora.

- O que fazes? – perguntou-me enquanto se sentou ao meu lado.

- Como assim?

- Qual é o teu trabalho?

- Bem, sou jornalista, escrevo umas coisas.

Riu-se e eu não percebi o motivo.

- Qual é graça?

- Desculpa – respondeu – não me ri de ti. A verdade é que estou à tua espera há muito tempo. Tinha a certeza que num dia assim irias aparecer.

- Isso quer dizer exactamente o quê? – perguntei ligeiramente assustado.

- É que hoje eu faço anos, mas em vez de receber sou eu que quero dar algo.

- A mim?

- Sim, quero dar-te uma história. No fim fazes o que quiseres. Podes revelá-la ou não, que é lá contigo, mas desde já te garanto que, embora seja verdade tudo o que te vou contar, não será fácil fazeres com que as pessoas acreditem.

Naquele momento ainda não tinha conseguido perceber se aquele homem estava no seu estado normal ou se já tinha bebido uns copos, mas satisfazia-me o facto de saber que tinha com que me entreter até o António regressar.

- Como te disse, hoje, nove de Julho… faço vinte e oito anos.

Fiquei imóvel, apenas a observar o movimento dos seus olhos e à espera que ele acrescentasse alguma coisa que me fizesse entender o que tinha acabado de dizer.

- Deves achar estranho isto mas na verdade eu voltei a nascer um dia depois de ser enterrado.

Devem ter passado apenas alguns segundos mas o silêncio que se seguiu àquela revelação pareceu-me uma eternidade. Quase sem respirar, acendi outro cigarro e enchi novamente o copo com uísque. Tentava ainda ordenar as ideias quando voltei a escutar aquela voz, ligeiramente enrouquecida, ao mesmo tempo firme, segura e sem hesitações.

- Queres ouvir a história?

- Claro – respondi.

Ali ao lado, aquele homem, que para mim ainda não tinha nome, desviou os olhos dos meus, fixou-os em qualquer coisa indefinida e depois de, em cima do balcão, unir as mãos com os dedos cruzados foi dizendo:

 - As pessoas criam as suas próprias verdades e, mesmo que não tenham a certeza de coisa alguma, a maior parte das vezes não querem saber o que é mesmo verdade e, nada, nem mesmo na dúvida, as faz mudar de opinião. Sabes, há coisas que sabemos e há coisas desconhecidas, e entre elas, existem as portas. Mas a maioria não está preparada para abri-las e, assim, essas supostas verdades podem até não passar na realidade de mentiras mas elas nem dão conta disso e acabam mesmo sem se aperceberem por alimentá-las e viver assim para o resto das suas vidas.

- Isso lembra-me qualquer coisa que já terei lido – disse-lhe.

                                                                                            (continua)



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