sexta-feira, 3 de junho de 2016

Manuela


Daniel deixou-me sozinho por volta das sete da tarde. Entrava, de novo, ao serviço daí a uma hora e tinha que passar por casa. Durante aquele tempo em que estivemos juntos tentou vezes sem conta que lhe falasse da noite anterior. Por entre palavras, risos, cervejas, tremoços e duas bifanas, ainda acabou por me deixar mais curioso quando abordámos a situação estranha que passei no bar que tinha recomendado e ele me falou das histórias insólitas e até assustadoras envolvendo fantasmas, espíritos, feitiçaria e magia negra que António às vezes contava do tempo que tinha vivido em África. Acrescentou também que, por vezes, um ou outro amigo com quem tinha trabalhado por lá o vinha visitar e nesse caso poderia muito bem ser um deles.

Depois de Daniel se afastar permaneci mais algum tempo por ali sozinho com os meus pensamentos na esplanada mais central de São Martinho do Porto. Até que reparei em Manuela, que se encontrava à porta da albergaria e lembrei-me naquele instante que lhe tinha ganho uma aposta e ela me devia um café. Sorri-lhe de longe quando dei conta que me tinha visto e até fiquei surpreendido quando a vi rir com as duas mãos no ar e os dedos completamente abertos como que a avisar que só estaria disponível às dez horas. Acenei-lhe afirmativamente  com o polegar.

Para ajudar a passar melhor aquelas horas que ainda faltavam até ao cair da noite, embora estivesse sozinho, procurei um sítio agradável para jantar, que acabei por encontrar junto ao cais, onde por sorte ainda tive a oportunidade de ver um dos mais extraordinários ocasos que até então tinha observado.

À hora marcada parti, tal como planeado, ao encontro de Manuela.

- Então onde vamos beber o nosso café? – perguntei.

- Vamos a um local simpático que tem boa música. Pode ser que se consiga arranjar mesa.

O local simpático era um famoso pub que se situava na estrada marginal junto à praia e que não era um sítio desconhecido para mim. Anos antes, por aquelas bandas, era o único local onde havia música ao vivo. Era ali que eu e alguns amigos nos encontrávamos e começávamos a beber as primeiras cervejas da noite. Pouco passava das dez da noite e o movimento no seu interior já era intenso. Com alguma sorte, lá conseguimos arranjar dois lugares numa mesa que tivemos que partilhar com outros dois casais que não conhecíamos. Se exceptuássemos a altura da música que nos obrigava a falar num tom mais elevado que o normal estava-se bem por ali. Ficámos sentados lado a lado, os nossos corpos roçavam-se com naturalidade e não nos sentíamos constrangidos. Sempre que olhava para a cara de Manuela observava-lhe um permanente  sorriso, um ar que transbordava simpatia, alegria e dava um brilho suplementar aos deslumbrantes olhos esverdeados.

- Já conhecias? – perguntou-me.

- Ui, se estas paredes falassem poderiam contar-te muitas histórias terríveis sobre mim.

- Costumas vir cá muitas vezes?

- Sempre que posso. Que idade tens? – perguntei.

- Vinte e um. E em que trabalhas? – retorquiu ela.

- Sou jornalista.

- Que fixe (!) – respondeu no momento em que fomos interrompidos pelo empregado de mesa.

         - Desejam alguma coisa?

- Eu quero um café e uma água natural sem gás – pediu Manuela.

- Para mim é um café e uma água com sabor a Irlanda – acrescentei.

O empregado permaneceu parado à espera que fosse eu a decifrar o que antes tinha dito. Quase me desmanchei com o esforço que ele fez antes de me perguntar.

- É um uísque que quer?

- Sim, Jameson.

- Ah, pois claro, irlandês, peço desculpa, ainda tenho pouco tempo disto.

- Na boa, estava a brincar, mas por favor, não se esqueça que não quero gelo, isso é que já é a sério.

- Trago já – disse o empregado virando costas.

Manuela continuava com o seu belo sorriso estampado no rosto.

- Qualquer dia apanho um empregado que não gosta de brincadeiras e sou mal atendido.

- Este não faria isso – disse Manuela a rir.

- Olha, não vás julgar que é atrevimento mas não consigo evitar dizer que tens um sorriso lindo – atirei de rompante. - Aliás, não é só o sorriso, tu és linda e os teus olhos deixaram-me alucinado desde que os vi ontem pela primeira vez.

Manuela baixou por segundos o olhar para a mesa não disfarçando um ligeiro tom avermelhado que lhe pintou a face. Foi a minha vez de soltar o riso.

- Não é preciso corar. Não terá sido a primeira vez que te disseram isso.

- Podes ter a certeza que foi a primeira vez que me disseram assim, olhos nos olhos, tão inesperadamente.

- Não fiques envergonhada, não vale a pena, foi apenas um elogio sincero à tua beleza.

Manuela sorriu e serenou. Instantes depois chamou-me a atenção para a música que estava a tocar.

- Só se ouve isto este Verão.

Fiquei quieto por instantes à procura da concentração que precisava para tentar perceber no meio de tantas vozes misturadas qual a música a que se referia. Alguém gritava qualquer coisa como everything’s gonna be all right, rockabye, rockabye, parecia não passar do mesmo. Se aquela era a música forte do Verão fiquei com a sensação que estava desactualizado e por isso respondi a Manuela com uma careta que demostrava a minha ignorância.

- Acho que nunca prestei atenção a isto.

- A sério? Não acredito. É o Shawn Mullins. Isto toca nas rádios a todas as horas.

- Pois, mas com o tempo fui perdendo o hábito de ouvir rádio até porque as músicas que gosto de ouvir já não tocam há muito tempo.

- Que músicas? – perguntou ela com curiosidade.

- Coisas dos Supertramp, Pink Floyd, Doors, Genesis, Rolling Stones, Led Zeppelin, Deep Purple, Van Halen, Jethro Tull, Bob Dylan, Tom Waits, Yes, The Who e por aí adiante, poderia ficar aqui uma hora a dizer nomes que talvez não te digam nada.

- Eu gosto de saber, alguns conheço bem, os Doors, por exemplo, até gosto bastante.

- A sério?… Mas que bem, já não é normal encontrar alguém da tua idade a gostar de Doors. Tem piada, fiz recentemente um trabalho sobre eles para uma revista.

- Tinham temas fantásticos e o Jim Morrison é o máximo. O meu pai é louco por ele. Temos os discos todos lá em casa. O meu pai emigrou pouco depois de eu ter nascido, porque vive do mar e isto aqui há muito que não dá nada, mas desde sempre, quando vem de férias, que me habituei a ouvir Doors quase em permanência. Vais achar uma parvoíce mas ele repete vezes sem conta a história de ter tido em tempos um companheiro de embarcação de quem se tornou amigo e que lhe fazia lembrar o Jim Morrison.

- Estás a surpreender-me – disse-lhe no momento em que ouvimos alguém gritar.

- Nela!

Olhámos em simultâneo para a outra extremidade do pub e reparámos em duas raparigas que acenaram e começaram a passar por entre um amontoado de gente vindo ao nosso encontro. Quando se aproximaram, cumprimentaram-se as três efusivamente como quem não se via há bastante tempo.

- Estás na mesma – dizia uma - que vais fazer hoje à noite?

- Ainda não sei.

- Fixe – gritou a mesma rapariga em absoluto histerismo. – Então, vamos curtir em nome dos bons velhos tempos. Já viste por aí o resto da malta?

- Alguns – respondeu Manuela trocando comigo um olhar discreto como se estivesse a pedir desculpa pelo que se estava a passar.

- O que é que está dar por aqui? – insistia a eléctrica amiga não dando tempo para qualquer resposta de Manuela. – O costume, não é? É por isso que a gente curte tanto isto. - E soltou uma gargalhada que ecoou mais alto que a música que tocava no pub.

Manuela olhou outra vez para mim e eu percebi que o nosso encontro tinha chegado ao fim.

- A sério que não ficas chateado? – perguntou-me.

- Claro que não. Pode ser que nos encontremos por aí ainda esta noite.

Com alguns encontrões e ligeiros tropeções lá consegui chegar à porta de saída. Olhei para o relógio e reparei que não tinha estado muito tempo no interior do pub, ainda eram dez e meia. Resolvi andar em direcção ao carro sem ter bem a certeza do que iria fazer a seguir. Inesperadamente e com alguma estranheza, quando me sentei ao volante e dei à chave, senti uma enorme vontade de regressar ao bar do António.

                                                           (continua)

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