quarta-feira, 6 de julho de 2016

Epílogo


“Quando as portas da percepção forem purificadas os homens verão as coisas como elas realmente são: infinitas.”



Aldous Leonard Huxley




Epílogo






“O Mundo não passa de um filme

que os homens imaginam.”



Após aquela última frase levantou-se, virou-me as costas, afastou-se e voltou a ocupar o mesmo lugar onde o tinha visto pela primeira vez na noite anterior. Percebo-o a chorar, de dor, aquele choro mudo que não se vê, que apenas se sente.

Não tive coragem para voltar a importuná-lo. Olhei para o relógio e reparei que já eram quase duas da manhã. Ocorreu-me que estava na hora ir andando. De repente, apeteceu-me regressar rapidamente a Lisboa para reflectir e escrever sobre aquela noite. Embora quisesse despedir-me do António não sabia se ele ainda estaria para demorar. Resolvi levantar-me e de caminho para a saída ainda me passou pela cabeça que tudo aquilo que tinha acabado de ouvir talvez tivesse sido um sonho, um delírio. Mas rapidamente senti que estava bem acordado quando um vento gélido me trespassou a face assim que abri a porta que dava para a rua.

Encaminhei-me para o carro quando fiquei momentaneamente cego devido aos faróis de um veículo que se aproximava naquele momento.

Percebi que era o António que após estacionar se dirigiu a mim.

- Desculpa a minha demora mas o que se passou foi uma coisa muito chata. A família do meu amigo está de rastos. A miúda dele, a Manuela, está uma lástima, nem quer acreditar no que aconteceu. Estas situações são tramadas. Tive que lá ficar um bocado, entendes?.

- Claro, António, só estava preocupado porque não queria ir embora sem pagar o que bebi e olhe que quase rebentei com outra garrafa.

- Não te preocupes com isso, rapaz, vai com cuidado para baixo e aparece sempre que quiseres.

António entrou e ouvi-o perfeitamente a trancar a porta do bar quando dei conta que não tinha comigo as chaves do carro.

Dei meia volta e chamei-o. Ele não demorou muito a reabri-la.

- Esqueceste alguma coisa? – perguntou-me.

- Devo ter deixado as chaves do carro em cima do balcão.

- Vai lá ver.

As chaves do carro não foram difíceis de encontrar. Estavam ao lado do bloco de notas em cima do balcão no sítio onde as tinha largado à chegada. Mas não pude deixar de reparar que não estava mais ninguém no interior do bar, pelo menos que eu conseguisse ver.

- O seu amigo já se foi deitar? – perguntei ao António enquanto ele estava já a limpar o balcão com um pano.

- Qual amigo?

- Aquele que estava aqui quando eu cheguei.

- Mas não estava cá ninguém dentro – disse-me.

Fiquei confuso naquele momento e sem saber se o António estava a reinar comigo até que me lembrei do carro a mais estacionado junto a bar e que eu já tinha reparado na noite anterior.

- Então mas de quem é o carro que está ali estacionado?

Assim que fiz aquela pergunta, o António quase me assustou. Levantou os olhos muito abertos de encontro aos meus e a sua altura de dois metros mais o ar carregado que lhe observei fizeram com que me sentisse muito pequeno naquele instante.

Contudo, calma e suavemente, embora nunca desviando de mim o seu penetrante olhar disse-me:

- Aquele carro é de um amigo que eu um dia conheci em Cape Town. Ele veio para aqui antes de mim e eu quando voltei reencontrei-o perdido, à deriva como um barco sem rumo, exactamente da mesma maneira como tinha dado por ele lá uns anos antes. Depois de eu regressar, ele viveu aqui comigo durante algum tempo até que um dia acordei e ele não estava. E a partir daí nunca mais soube nada dele. A única coisa que sei é que não levou nada e o carro ficou exactamente onde o deixou pela última vez.

- Mas o que aconteceu, terá morrido? - perguntei.

- Não creio – respondeu – ele costumava dizer grandes coisas se fazem quando os homens e as montanhas se encontram. Ora, um homem que diz isto não morre nunca, é um poeta e os poetas são eternos. A última noite que passei aqui com ele ouvi-o dizer que ainda continuava à procura das montanhas. E isto aqui, meu caro, é só uma pequena serra.

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