“Quando
as portas da percepção forem purificadas os homens verão as coisas como elas realmente
são: infinitas.”
Aldous
Leonard Huxley
Epílogo
“O Mundo não passa de um filme
que os homens imaginam.”
Após aquela última frase
levantou-se, virou-me as costas, afastou-se e voltou a ocupar o mesmo lugar
onde o tinha visto pela primeira vez na noite anterior. Percebo-o a chorar, de
dor, aquele choro mudo que não se vê, que apenas se sente.
Não tive coragem para
voltar a importuná-lo. Olhei para o relógio e reparei que já eram quase duas da
manhã. Ocorreu-me que estava na hora ir andando. De repente, apeteceu-me
regressar rapidamente a Lisboa para reflectir e escrever sobre aquela noite.
Embora quisesse despedir-me do António não sabia se ele ainda estaria para
demorar. Resolvi levantar-me e de caminho para a saída ainda me passou pela
cabeça que tudo aquilo que tinha acabado de ouvir talvez tivesse sido um sonho,
um delírio. Mas rapidamente senti que estava bem acordado quando um vento
gélido me trespassou a face assim que abri a porta que dava para a rua.
Encaminhei-me para o carro
quando fiquei momentaneamente cego devido aos faróis de um veículo que se
aproximava naquele momento.
Percebi que era o António
que após estacionar se dirigiu a mim.
- Desculpa a minha demora
mas o que se passou foi uma coisa muito chata. A família do meu amigo está de
rastos. A miúda dele, a Manuela, está uma lástima, nem quer acreditar no que
aconteceu. Estas situações são tramadas. Tive que lá ficar um bocado,
entendes?.
- Claro, António, só
estava preocupado porque não queria ir embora sem pagar o que bebi e olhe que
quase rebentei com outra garrafa.
- Não te preocupes com
isso, rapaz, vai com cuidado para baixo e aparece sempre que quiseres.
António entrou e ouvi-o
perfeitamente a trancar a porta do bar quando dei conta que não tinha comigo as
chaves do carro.
Dei meia volta e chamei-o.
Ele não demorou muito a reabri-la.
- Esqueceste alguma coisa?
– perguntou-me.
- Devo ter deixado as
chaves do carro em cima do balcão.
- Vai lá ver.
As chaves do carro não
foram difíceis de encontrar. Estavam ao lado do bloco de notas em cima do
balcão no sítio onde as tinha largado à chegada. Mas não pude deixar de reparar
que não estava mais ninguém no interior do bar, pelo menos que eu conseguisse
ver.
- O seu amigo já se foi
deitar? – perguntei ao António enquanto ele estava já a limpar o balcão com um
pano.
- Qual amigo?
- Aquele que estava aqui
quando eu cheguei.
- Mas não estava cá
ninguém dentro – disse-me.
Fiquei confuso naquele
momento e sem saber se o António estava a reinar comigo até que me lembrei do
carro a mais estacionado junto a bar e que eu já tinha reparado na noite
anterior.
- Então mas de quem é o
carro que está ali estacionado?
Assim que fiz aquela
pergunta, o António quase me assustou. Levantou os olhos muito abertos de
encontro aos meus e a sua altura de dois metros mais o ar carregado que lhe
observei fizeram com que me sentisse muito pequeno naquele instante.
Contudo, calma e
suavemente, embora nunca desviando de mim o seu penetrante olhar disse-me:
- Aquele carro é de um
amigo que eu um dia conheci em Cape Town.
Ele veio para aqui antes de mim e eu quando voltei reencontrei-o perdido, à
deriva como um barco sem rumo, exactamente da mesma maneira como tinha dado por
ele lá uns anos antes. Depois de eu regressar, ele viveu aqui comigo durante
algum tempo até que um dia acordei e ele não estava. E a partir daí nunca mais
soube nada dele. A única coisa que sei é que não levou nada e o carro ficou
exactamente onde o deixou pela última vez.
- Mas o que aconteceu,
terá morrido? - perguntei.
- Não creio – respondeu – ele costumava dizer grandes coisas se fazem quando os homens e
as montanhas se encontram. Ora, um homem que diz isto não morre nunca, é um
poeta e os poetas são eternos. A última noite que passei aqui com ele ouvi-o
dizer que ainda continuava à procura das montanhas. E isto aqui, meu caro, é só
uma pequena serra.
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